Comentários às críticas feitas ao "sonho" de ser aprovado em concurso público

William Douglas

Leonardo Bruno, no site Mídia Sem Máscara, em 27 de dezembro de 2010, em artigo nominado "O 'Sonho' do funcionalismo público..." critica o funcionalismo público sustentando que "o 'sonho' do concurso público, basicamente, é a mentalidade patrimonialista que se repete de geração por geração", e faz uma série de considerações.

Não quero ser nem parecer agressivo, mas estou cansado de ver tantos atacando o serviço público, sem levar em conta o que ele tem de bom, ou de observar que suas mazelas são muito mais as mazelas dos governantes, os quais vivem adotando políticas inadequadas para criar/manter a qualidade que todos esperamos. Vale começar anotando que sou juiz federal no Rio de Janeiro, e premiado por produtividade, constando no banco nacional de melhores práticas do Conselho da Justiça Federal e do CNJ. Comando uma equipe de funcionários extremamente dedicados e produtivos e tenho orgulho da escolha que fiz, e da função que exerço. Sou servidor por opção, vez que também tenho bastante espaço para trabalhar na iniciativa privada. Falo em meu nome e no nome de um enorme contingente de servidores que são competentes, honestos e produtivos.

Só para dar um exemplo mostrando que o problema não está no serviço público, ou, tanto melhor, que o problema real é bem maior do que ele, vale olhar para os legisladores. Eles conseguem fazer com que um motorista do Senado ganhe mais do que um oficial das Forças Armadas. Essas distorções não são dos servidores, mas da legislação. Mas, vamos ao que o articulista sustentou.

O articulista diz que se deparou "com uma frase que me soou, no mínimo, estranha. Um juiz federal, que também é professor e escritor de livros para concurso público, chamado William Douglas, falou do, 'sonho de passar em concurso público'."

Não sei a idade desse articulista, mas não deve ser muita, ou talvez seja muita, e a experiência de vida pouca, para achar estranho que as pessoas sonhem passar em um cargo público. Primeiro, porque ser servidor é uma carreira, uma opção profissional digna, e não há nada demais em alguém querer isso para si. Conheço pessoas que desde crianças desejam exercer alguma carreira típica do Estado, e não vejo nenhum mal nisso; segundo, passar em concurso traz uma série de prerrogativas e garantias que são boas e atraem candidatos. Em resumo, o Estado, no intuito de atrair bons quadros e também de dotar seus servidores de boas condições para servir ao público, oferece um conjunto de condições que atualmente faz o Estado competir com a iniciativa privada pelos melhores profissionais. Qual o mal nisso? Por que o Estado não pode se valer de boas condições de trabalho para atrair profissionais? Mais uma emenda: eu sou autor de livros em várias áreas, e não apenas para concursos (também escrevo livros na área jurídica, educacional e de espiritualidade). Tenho muito orgulho de poder produzir, seja como autor, seja como coordenador pedagógico da Editora Impetus, livros que ajudam o Estado a ter candidatos bem preparados para a aprovação. Ruim mesmo é quando sobram vagas, e a população tem serviços inadequados, por falta de quem saiba a matéria necessária para ter sucesso nos certames onde escolhemos, repito, os mais bem preparados.

Ele diz que: "Se um grupo de pessoas supõe que ser funcionário público é um sonho, é porque as coisas vão de mal a pior. Assustadores são aqueles indivíduos presunçosos, que acham que o estreito mundinho da burocracia seja o mais elevado nível de reconhecimento social e garantia econômica. Esses aí olham a sociedade de cima para baixo, sabe-se lá por quê. Todavia, de uma coisa há de se concluir: quando uma parte não muito pequena da sociedade sonha com cargos públicos, tal fato revela a falta de opção, a pobreza econômica e a visão social turva de uma nação."

As coisas não vão de mal a pior. É preciso desconhecer a situação do mundo e do país para dizer que elas estão indo de mal a pior. Existem servidores preguiçosos, presunçosos e com outros defeitos. Mas é conhecer pouco do que se fala não reconhecer que temos muitos servidores de boa cepa, e que a produtividade do serviço público tem aumentado. Aliás, os concursos ajudaram bastante nisso, pois através deles são escolhidos os mais bem preparados, e não os amigos e parentes dos poderosos. Chamar a burocracia de "estreito mundinho" é uma visão estreita da burocracia. Dizer que entendemos que a burocracia é "o mais elevado nível de reconhecimento social e garantia econômica" é colocar palavras na boca, minha e dos concurseiros. O que sempre digo, e os concurseiros sabem, é que o concurso é uma das boas opções: nunca disse ser a melhor ou a mais elevada, apenas digo que é uma das boas opções dentre tantas. Não se pode pensar em "olhar a sociedade de cima para baixo" se a ideia é servir. Aliás, sobre isso, recomendo o site www.revolucao.info. Quanto a achar que uma parte da sociedade deseja ser servidor, recomendo que se estude o serviço público nos países mais desenvolvidos, onde é respeitado e desejado. Para não ter muito trabalho com a pesquisa, recomendo começar pela França, que é um bom exemplo.

O articulista diz que a iniciativa privada paga maus salários. Não é verdade. Dependendo da qualificação, os salários são extremamente atraentes, inclusive melhores que os do funcionalismo público. Dizer que o funcionalismo não produz renda também é equivocado. Primeiro, porque esta não é nossa função; segundo, porque nossa função contribui de forma indireta para que riquezas sejam produzidas. O que se chama de "custo Brasil" é exatamente o resultado da falta de um serviço público melhor e com uma quantidade mais adequada de servidores. Quando o serviço público não funciona, perdemos riqueza. Exemplo: "apagões" elétricos e aéreos. Se não quisermos estes e outros "apagões", precisamos de uma boa burocracia, de um bom serviço público. Quando falo em "boa burocracia", recomendo que se estude a origem do termo, não se olhando apenas a má fama que adquiriu por conta de maus servidores (a maioria com ingresso sem concurso, realidade que começou a mudar com a Constituição de 1988). Como dizia Dom Helder Câmara, não devemos abandonar as boas bandeiras apenas por estarem em mãos erradas. A boa burocracia é útil.

Dizer que o funcionalismo é caro, também é equivocado. Um juiz, um fiscal, um policial competente, honesto e eficiente geram muito mais riqueza para o país do que o quanto eles custam. Um médico, um professor, um enfermeiro competente, honesto e eficiente geram para a população os serviços que ela merece. É uma ilusão querer um bom professor, médico ou enfermeiro pagando mal, e maltratando o funcionalismo.

A carga tributária do país é alta, e muito, mas não por culpa exclusiva do funcionalismo. Uma Receita Federal e um Judiciário eficientes ajudariam muito a combater a sonegação e a carga tributária poderia ser menor por ser dispersada em uma base maior de contribuintes. Nesse sentido, o que temos que fazer é ter mais servidores bem remunerados, motivados, treinados e eficientes. Não o contrário.

O caminho para combater os problemas anotados (hospitais e escolas públicas caindo aos pedaços, corrupção, pouca acumulação de capital e poupança, salários baixos, escassez de bons empregos e empobrecimento geral) não é piorar o serviço público, mas o contrário. Não é o único caminho, mas faz parte do conjunto de medidas que irá mudar a realidade. Se o serviço público é mal remunerado, desprestigiado etc., ninguém irá sonhar/desejar/querer fazer parte dele, e a tendência é que os problemas citados sejam maiores, ou pela incompetência/desinteresse/falta de servidores e/ou pelo aumento do "custo Brasil" decorrente, em boa parte, da falta de uma boa burocracia, da falta de inteligência/competência no serviço público.

Os diversos problemas dos empreendedores de nosso país não são causados pelos servidores públicos, mas sim, quando muito, pelos políticos, pelos gestores maiores, escolhidos pelo voto popular. As políticas públicas são hostis aos empresários (excetuando-se os que negociam com o poder), mas isto ocorre em degraus não técnicos, ou seja, com servidores temporários, eleitos ou nomeados em comissão. Um exemplo disso é a Petrobras, que perdeu produtividade quando começaram a fazer a nomeação para os cargos não mais por critérios técnicos, mas sim políticos. Mais uma vez, o problema não é a burocracia, mas a falta dela. O "patrimonialismo, que confunde a autoridade pública abstrata do cargo com a própria pessoa do cargo" é um problema cultural que começa pelos altos cargos da Administração Pública e que deve ser combatido em todos os degraus, mas não sem alertar que o fenômeno é mais comum nos degraus de cima.

Ao contrário do que sustenta o articulista, o "sonho" do concurso não se limita à mentalidade patrimonialista. Temos pessoas que sonham com um serviço público melhor. E para isto entram nele, com a tranquilidade de que atualmente é uma carreira com razoável patamar de garantias. Querendo pesquisar, vale ler os projetos premiados com o Innovare, onde é possível perceber o quanto magistrados e servidores do Poder Judiciário se interessam por melhorar a prestação jurisdicional.

O articulista diz ainda que "Chega a ser paradoxal que os mais competitivos procurem no Estado, aquilo que não acham no mercado. Claro que os "concurseiros" só são competitivos quando estudam para as provas. Depois se tornam parasitários em privilégios. Ciosos do seu bem estar, de sua estabilidade profissional e de suas regalias profissionais, uma parte significativa deles é abertamente hostil a quaisquer mudanças de ordem econômica, quando implicam a diminuição do Estado ou do orçamento." Isto não é verdade. Embora existam casos como o narrado, há também um bom número de servidores decentes e trabalhadores. E cabe aos Poderes e aos degraus de cima do funcionalismo trabalhar para que os maus servidores sejam extirpados.

A estabilidade, criticada pelo articulista, deveria ser objeto de maior pesquisa. Em isso ocorrendo, o mesmo veria que eu mesmo sou um dos que advoga sua mitigação. É preciso também premiar a produtividade no serviço público, instrumento cada vez mais aplicado pelos Poderes.

Quando o articulista diz que "em muitos países ricos e democráticos, o funcionalismo público tem um significado bastante secundário, como de fato, deve ser" esquece de perceber que assim é exatamente pelo fato de o serviço público ser de boa qualidade. O serviço público é como o serviço doméstico: quanto melhor ele é feito, menos é percebido.

O articulista viu na palavra "sonho" algo que não é nada mais do que uma decisão diante de uma série de circunstâncias. Dizer que se tem o "sonho" de passar em um concurso não é melhor nem pior do que o "sonho" de trabalhar na Microsoft, ou virar artista de cinema, ou montar sua própria empresa. É apenas mais uma escolha. Assim, o "sonho" não induz pensar que seja "criticável a mitificação do cargo público como se fosse uma atividade superior, acima do bem e do mal". Isso nunca foi dito por mim, e não vejo isso sendo dito por ninguém da área. Volto a dizer: o que custa muito caro ao país é a falta de um serviço público melhor, e o concurso, o respeito, o treinamento e a cobrança de metas e resultados são muito úteis para que ele seja melhor.

Uma das críticas é de que o "cargo público ganha aura mística, sacerdotal, importância desproporcional e absurda". Não vejo o cargo como algo mítico, mas certamente envolve um sacerdócio sim. Um sacerdócio com regras claras (por exemplo, a Constituição e, na área federal, a Lei nº 8.112), mas um sacerdócio. Claro que nem todos consideram assim, muitos entendem se tratar apenas de uma relação administrativa. Eu vejo como relação administrativa e sacerdócio. E como todo bom sacerdote, o objetivo não é ser servido, mas servir. Como diria Jesus, mais bem-aventurado é dar do que receber, e maior é quem serve a muitos do que aquele que é servido por muitos.

O articulista diz que "O inchaço do poder público e a expansão da burocracia estatal é uma tragédia para o país. Onera o contribuinte, arruína as contas do Estado e poda o desenvolvimento de uma nação". Apenas concordo com ele quando se incha o serviço público com funcionários mal escolhidos, mal treinados, mal controlados. Aumentar o número de servidores pode ser útil, e, mais uma vez, a burocracia pode ser boa. Não se deve ficar preso à má fama do termo e esquecer sua origem histórica e sua aplicabilidade adequada. Vale anotar, para os que acham que temos servidores demais, a sugestão de se pesquisar o serviço público, sua remuneração e percentual da PEA, nos países nórdicos.

Dados a citar: "Ao contrário do que se imagina, o número de servidores públicos no Brasil não é tão alto em comparação a outros países. O Brasil tem menos servidores como proporção do total de trabalhadores ocupados que todos os parceiros do Mercosul (Argentina, Uruguai e Paraguai), Estados Unidos, França, Espanha, Alemanha, Austrália, Dinamarca, Finlândia e Suécia." (...) "Mesmo nos Estados Unidos, a mais importante economia capitalista, caracterizada pelo seu caráter, 'privatista' e pelo seu elevado contingente de postos de trabalho no setor privado, o peso do emprego público chega a 15% dos ocupados", aponta o estudo Emprego Público no Brasil. "O Brasil tinha em 2005 um total de 10,7% de seus trabalhadores ocupados no setor público. Em 1995, esse percentual era de 11,3%. O Canadá tem um índice de 16,3%, e a Austrália, de 14,4%. O país com maior proporção de funcionários públicos é a Dinamarca: 39,2%" (Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/mat/2009/03/30/ipea-brasil-tem-menos-funcionarios-publicos-do-que-os-estados-unidos-755061888.asp).

Enfim, o articulista faz muitas colocações acertadas e indica uma série de problemas que efetivamente existem, mas erra, e erra bastante, em alguns pontos cruciais:

(a) ao desconhecer ou, ao menos, ao não levar em conta a realidade do serviço público nos países desenvolvidos;

(b) ao ter preconceito contra a palavra "sonho", que nada mais é do que a efetivação de uma escolha dentre as possíveis;

(c) ao não perceber o quanto o serviço público brasileiro vem melhorando, mesmo que em velocidade menor do que a que todos gostaríamos;

(d) ao não reparar a enorme quantidade de servidores exemplares e que estão mudando para melhor o serviço público no país e, por fim;

(e) ao desconhecer, ou ao menos, não levar em conta o quanto um serviço público eficiente contribui para:

(1) o bom funcionamento do país;

(2) a existência de ambiente propício ao regular funcionamento da iniciativa privada;

(3) o desenvolvimento econômico; e

(4) o cumprimento dos deveres do Estado e dos direitos do povo (por exemplo, arts. 5º e 6º da Constituição), povo este que é não só o titular do Poder mas, em especial, o destinatário dos serviços públicos.

William Douglas, juiz federal/RJ, Mestre em Estado e Cidadania - UGF, Especialista em Políticas Públicas e Governo - EPPG/UFRJ, professor e escritor.

Artigos, textos e dicas de William Douglas

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