Concursos, aviadores, mozarts e outras reflexões num fim de tarde

William Douglas

Antoine de Saint-Exupéry nasceu na França, em 1900, e morreu em 1944. Foi aviador de profissão e escritor por devoção. Foi piloto do correio aéreo na década de 1930, voando pela África, Argentina, Chile, Brasil etc. Foi um dos pioneiros da aviação comercial francesa e atuou na Segunda Guerra Mundial unindo-se à aviação Aliada em 1942. De espírito audaz, sentia-se melhor do que nunca quando estava no ar e, de preferência, realizando os vôos mais arriscados.

Exupéry viveu missões heróicas e soube transportá-las, bem como suas reflexões enquanto voava, para seus livros, e de maneira profunda. Seu livro mais conhecido "O pequeno príncipe", é um convite à reflexão para que as pessoas se humanizem, se cativem e se percebam. Mas o aviador-poeta tem outras contribuições à Humanidade.

Uma de suas fantásticas obras, ainda que não tão conhecida como a história do Pequeno Príncipe, é o livro Terra dos Homens (1ª ed. Especial. - Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006). Nessa obra colhi o objeto de nossa conversa de hoje. Inicialmente, convido o amigo a ler o seguinte texto, extraído das páginas 138 a 140 de Terra dos Homens:

"Há alguns anos, durante uma longa viagem de estrada de ferro, resolvi visitar aquela pátria em marcha em que ficaria por três dias, prisioneiro, durante os três dias, daquele ruído de seixos rolados pelo mar. Levantei-me. Pela uma hora da madrugada corri os carros, de ponta a ponta. Os dormitórios estavam vazios. Os carros de primeira classe estavam vazios.

Mas os carros de terceira estavam cheios de centenas de operários poloneses despedidos na França, que voltavam para a sua Polônia. Caminhei pelo carro levantando as pernas para não tocar nos corpos adormecidos. Parei para olhar. De pé sob a lâmpada do carro, contemplei, naquele vagão sem divisões, que parecia um dormitório, que cheirava a caserna e a delegacia, toda uma população confusa, sacudida pelos movimentos do trem. Toda uma população mergulhada em sonhos tristes, que regressava para a sua miséria. Grandes cabeças raspadas rolavam no encosto dos bancos. Homens, mulheres, crianças, todos se viravam da direita para a esquerda, como atacados por todos aqueles ruídos, por todas aquelas sacudidelas que ameaçavam seu sono, seu esquecimento. Não achavam ali a hospitalidade de um bom sono.

E assim ele me pareciam ter perdido um pouco a qualidade humana, sacudidos de um extremo a outro da Europa pelas necessidades econômicas, arrancados à casinha do Norte, ao minúsculo jardim, aos três vasos de gerânio que notei outrora nas janelas dos mineiros poloneses. Nos grandes fardos mal arrumados, mal amarrados, eles haviam juntado apenas seus utensílios de cozinha, suas roupas de cama e cortinas. Mas tudo o que haviam acariciado e amado, tudo a que se haviam afeiçoado em quatro ou cinco anos de vida na França, o gato, o cachorro, os gerânios, tudo tiveram de sacrificar, levando apenas aquelas baterias de cozinha.

Uma criança chupava o seio de sua mãe que de tão cansada parecia dormir. A vida transmitia-se assim num absurdo e na desordem daquela viagem. Olhei o pai. Um crânio pesado e nu como uma pedra. Um corpo dobrado no desconforto do sono, preso nas suas vestimentas de trabalho, um rosto escavado com buracos de barro. Era como um desses embrulhos sem forma que se deixam ficar à noite nas bancas dos mercados. E eu pensei: o problema não reside nessa miséria, nem nessa sujeira, nem nessa fealdade. Mas esse homem e essa mulher sem dúvida se conheceram um dia, e o homem sorriu para a mulher; levou-lhe, sem dúvida, algumas flores depois do trabalho. Tímido e sem jeito, ele temia ser desprezado. Mas a mulher, por faceirice natural, a mulher, certa de sua graça, talvez se divertisse em inquietá-lo. E ele, que hoje é apenas uma máquina de cavar ou martelar, sentia assim no coração uma deliciosa angústia. O mistério está nisso: eles se terem tornado esses montes de barro. Por que terrível molde terão passado, por que estranha máquina de entortar homens? Um animal ao envelhecer conserva a sua graça. Por que a bela argila humana se estraga assim?

E continuo minha viagem entre uma população de sono turvo e inquieto. Flutua no ar um barulho vago feito de roncos roucos, de queixas obscuras, do raspar das botinas dos que se viram de um lado para o outro. E sempre, em surdina, o infatigável acompanhamento de seixos rolados pelo mar.

Sento-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher a criança, bem ou mal, havia se alojado, e dormia. Volta-se, porém, no sono, e seus rosto me aparece sob a luz da lâmpada. Ah, que lindo rosto! Havia nascido daquele casal uma espécie de fruto dourado. Daqueles pesados animais havia nascido um prodígio de graça e encanto. Inclinei-me sobre a fronte lisa, a pequena boca ingênua. E disse comigo mesmo: eis a face de um músico, Mozart criança, eis uma bela promessa da vida. Não são diferentes deles os belos príncipes das lendas. Protegido, educado, cultivado, que não seria ele? Quando, por mutação, nasce nos jardins uma rosa nova, os jardineiros se alvoroçam. A rosa é isolada, é cultivada, é favorecida. Mas não há jardineiros para os homens. Mozart criança irá para a estranha máquina de entortar homens. Mozart fará suas alegrias mais altas da música podre na sujeira dos café-concertos. Mozart está condenado.

Voltei para o meu carro. E pensava: essa gente quase não sofre o seu destino. E o que me atormenta aqui não é a caridade. Não se trata da gente se comover sobre uma ferida eternamente aberta. Os que a levam não a sentem. É alguma coisa como a espécie humana, e não o indivíduo, que está ferida, que está lesada. Não creio na piedade. O que me atormenta é o ponto de vista do jardineiro. O que me atormenta não é essa miséria na qual, afinal de contas, a gente se acomoda, como no ócio. Gerações de orientais vivem na sujeira e gostam de viver assim.

O que me atormenta, as sopas populares não remedeiam. O que me atormenta não são essas faces escavadas nem essas feiúras. É Mozart assassinado, um pouco, em cada um desses homens.

Só o Espírito, soprando sobre a argila, pode criar o Homem."

Este trecho me fez companhia num final de tarde, ainda em Búzios, na mesma oportunidade em que preparei outro artigo para este espaço. E, lendo, não pude deixar de lembrar de cada um de vocês, concursandos, como seus próprios Mozarts.

Como diria Exupéry, "disse comigo mesmo: eis a face de um músico, Mozart criança, eis uma bela promessa da vida." Eis aqui, diante de meu texto, na tela do computador, eis aqui um Mozart em construção, uma bela promessa de (mais e melhor) vida: um concursando.

O aviador-poeta conseguiu ter a sensibilidade de ver a semente e a possibilidade de um Mozart em cada pessoa cansada naquela locomotiva. Mas, ao contrário daquelas pessoas, o Mozart diante de meu texto, diante dessa tela que é nossa fonte de comunicação, diante de mim há um Mozart se construindo, um Mozart que tem tudo para não se perder como se perderam tantos naqueles trens por onde seguia Exupéry.

Você é seu próprio Mozart, um artista em construção, autor de uma sinfonia possível e agradável. Autor de uma sonata trabalhosa, mas realizável.

Você é um Mozart, redigindo com seus atos e dias a música que vai ser tocada para você mesmo e para sua família, para seu país, para as pessoas a quem você - devidamente recompensado e remunerado - vai poder servir.

Você pode não estar se achando um Mozart... mas acredite, você é. Cada um tem sua vida, suas dificuldades, seus obstáculos a superar. Dificilmente nascemos um "Mozart". Essa construção é um processo, onde a grande diferença está em como nos posicionamos diante dos desafios da vida. Ou, como diria o próprio Exupéry, "O verdadeiro homem mede a sua força, quando se defronta com o obstáculo."

Boa música, Mozart.

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